“Esta é uma crise global e requer uma ação global, assim como a pandemia e a crise climática. Mas tal coordenação global é impossível enquanto a indústria mundial de alimentos for controlada e estiver nas mãos de alguns poucos produtores e distribuidores multinacionais de alimentos e a economia mundial se dirigir para outra recessão”, escreve Michael Roberts, economista marxista britânico, em artigo publicado por CADTM, 06-06-2022. A tradução é do Cepat.
A guerra entre a Rússia e a Ucrânia manifestou o desastre mundial de fornecimento de alimentos, mas estava sendo gestado muito antes da guerra. A cadeia de fornecimento de alimentos se tornou cada vez mais global. A Grande Recessão de 2008-9 começou a interromper essa cadeia, baseada em empresas multinacionais de alimentos que controlam o fornecimento de agricultores de todo o mundo.
Essas empresas dirigiam a demanda, geravam a oferta de fertilizantes e dominavam grande parte das terras cultiváveis. Quando bateu a Grande Recessão, perderam lucros, razão pela qual reduziram o investimento e aumentaram a pressão sobre os produtores de alimentos no “Sul Global”.
As fissuras nesses pilares da oferta de alimentos foram acompanhadas pelo aumento dos preços do petróleo, a explosiva demanda por biocombustíveis à base de milho, os altos custos de transporte, a especulação nos mercados financeiros, os baixos estoques de grãos, as severas mudanças climáticas em alguns dos principais produtores de grãos e o aumento das políticas comerciais protecionistas. Este foi o “clima” alimentar na longa depressão até 2019, antes que viesse a pandemia.
Preços de alimentos, combustíveis e fertilizantes em relação ao crescimento do PIB em países de renda baixa e média, 2000-2022. FAO/FMI/Banco Mundial
A crise alimentar posterior à Grande Recessão durou relativamente pouco, mas foi seguida por outra explosão dos preços dos alimentos em 2011-12. Por fim, o “boom das matérias-primas” terminou e os preços dos alimentos permaneceram relativamente estáveis, durante um tempo. Mas a crise da pandemia provocou uma nova crise quando a cadeia de fornecimento global entrou em colapso, os custos de transporte dispararam e o fornecimento de fertilizantes se esgotou. O Índice de Preços dos cereais mostra que os preços atingiram o nível de 2008 em 2021.
O mundo não se recuperou das consequências da pandemia de Covid-19, a pior crise econômica desde a Segunda Guerra Mundial. E isso quando muitas economias enfrentam grandes cargas de dívida em relação à renda nacional. A África é a região mais vulnerável. O norte da África é um grande importador de trigo, a maior parte proveniente da Rússia e da Ucrânia, motivo pelo qual enfrenta uma crise alimentar particularmente aguda.
A África subsaariana é predominantemente rural, mas suas crescentes populações urbanas são relativamente pobres e é mais provável que consumam grãos importados. Os agricultores de muitas partes da África lutam para ter acesso a fertilizantes, mesmo a preços inflacionados, devido a problemas de transporte e câmbio. Os custos exorbitantemente altos corroem os lucros dos agricultores e podem reduzir os incentivos para aumentar a produção, o que amortizaria os benefícios de alguns preços mais altos de alimentos para a redução da pobreza.
Os países já afetados por conflitos e pela mudança climática são excepcionalmente vulneráveis. O Iêmen, devastado pela guerra, depende muito dos grãos importados. O norte da Etiópia é uma das regiões mais pobres da Terra e enfrenta um conflito contínuo e uma crise humanitária. E Madagascar foi açoitado por sucessivas tempestades tropicais e ciclones, em janeiro e fevereiro, deixando seu sistema alimentar quebrado. No Afeganistão, as taxas de mortalidade infantil estão disparando devido ao colapso da economia e dos serviços básicos de saúde. O PIB de Mianmar contraiu 18%, após o golpe militar de fevereiro de 2021.
A guerra entre a Rússia e a Ucrânia exacerbou esse desastre de preços e segurança alimentar. A Rússia e a Ucrânia representam mais de 30% das exportações mundiais de grãos. A Rússia sozinha fornece 13% dos fertilizantes mundiais e 11% das exportações de petróleo, e a Ucrânia fornece a metade do óleo de girassol do mundo. Somado tudo isso, tem-se um grande impacto na oferta do sistema alimentar mundial, e uma guerra prolongada na Ucrânia e o crescente isolamento da economia da Rússia podem manter altos os preços dos alimentos, combustíveis e fertilizantes durante anos.
A invasão russa à Ucrânia empurrou o índice mundial de preços de alimentos a um máximo histórico. A invasão paralisou os portos do Mar Negro da Ucrânia, muito ativos antes, e deixou as terras agrícolas desamparadas, ao mesmo tempo em que restringiu a capacidade de exportação da Rússia. A pandemia continua complicando as cadeias de fornecimento, ao passo que a mudança climática ameaça a produção em muitas das regiões agrícolas do mundo, com mais secas, inundações, calor e incêndios florestais.
Milhões estão sendo empurrados para a fome, segundo o Programa Mundial de Alimentos. Os considerados “desnutridos” aumentaram em 118 milhões de pessoas, em 2020, após permanecer praticamente sem mudanças, durante vários anos. As estimativas atuais situam esse número em cerca de 100 milhões a mais.
Os níveis de fome aguda (o número de pessoas que não conseguem satisfazer suas necessidades de consumo de alimentos a curto prazo) aumentaram em quase 40 milhões, no ano passado. A guerra sempre foi a principal promotora da fome extrema e agora a guerra entre a Rússia e a Ucrânia aumenta o risco de fome e carestia para muitos outros milhões.
Segundo a diretora-geral do FMI, Kristalina Georgieva: “Para vários países, essa crise alimentar se soma à crise da dívida. Desde 2015, a proporção de países de baixa renda que estão em situação de superendividamento ou perto disso duplicou, passando de 30% a 60%. Para muitos, a reestruturação da dívida é uma prioridade urgente... Sabemos que a fome é o maior problema solucionável do mundo. Diante de uma crise iminente, é o momento de agir com decisão e resolvê-la.”
Mas as principais soluções para esse desastre são inadequadas ou utópicas, ou as duas coisas. O chamado é para que os grandes produtores de grãos resolvam os gargalos logísticos, liberem estoques e resistam à tentação de impor restrições à exportação de alimentos. As nações produtoras de petróleo devem aumentar o fornecimento de combustível para ajudar a reduzir os custos de combustível, fertilizantes e transporte. E os governos, as instituições internacionais e inclusive o setor privado devem oferecer proteção social por meio de alimentos ou ajuda financeira.
Nenhuma dessas propostas está sendo aplicada. As grandes potências capitalistas estão fazendo muito pouco para ajudar esses países pobres com milhões de famintos e desnutridos. No final do mês passado, a Comissão Europeia anunciou um pacote de ajuda de 1,5 bilhão de euros, juntamente com medidas adicionais, para apoiar os agricultores da União Europeia e proteger a segurança alimentar do bloco. Os líderes do grupo do Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional, Programa Mundial de Alimentos das Nações Unidas e Organização Mundial do Comércio pediram uma ação coordenada urgente para abordar a segurança alimentar. Palavras bonitas, mas sem ação.
Uma verdadeira ajuda seria cancelar as dívidas dos países pobres. Mas tudo o que o FMI e as grandes potências oferecem é uma suspensão do serviço da dívida: as dívidas permanecem, mas os reembolsos podem ser adiados. Mesmo esse “alívio” é patético. No total, nos últimos dois anos, os governos do G20 suspenderam apenas 10,3 bilhões de dólares. Só no primeiro ano da pandemia, os países de baixa renda acumularam uma dívida de 860 bilhões de dólares, segundo o Banco Mundial.
A outra “solução” do FMI foi aumentar o volume de Direitos Especiais de Saque (DES), o dinheiro internacional que será utilizado para a ajuda adicional. O FMI injetou 650 bilhões em ajuda por meio do programa SDR. Mas devido ao sistema de cotas para a distribuição de DES, as cotas de DES se inclinam desproporcionalmente para os países ricos: toda a África recebeu menos DES que o Bundesbank alemão!
As condições macroeconômicas provocam distúrbios pelos alimentos. Em um novo relatório, intitulado “Decrescendo em tempos de conflito”, a UNCTAD [Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento] detalha os cenários que se avizinham. O Sri Lanka, cuja crise da dívida vem sendo gestada há vários anos, é um exemplo útil da dinâmica principal. As remessas e as exportações entraram em colapso durante a pandemia, que também interrompeu o importante setor do turismo.
A desaceleração do crescimento erodiu o orçamento e esgotou as reservas de divisas, tornando a importação de petróleo e alimentos difícil para Colombo. A escassez é aguda. Dois homens de 70 anos morreram enquanto esperavam na fila por combustível, segundo informou Al Jazeera. Os preços do leite aumentaram e os exames escolares foram cancelados devido à escassez de papel e tinta. O Sri Lanka luta para pagar os 45 bilhões em dívida a longo prazo que deve, dos quais mais de 7 bilhões de dólares vencem este ano, e pode se juntar aos países que quebraram durante a pandemia, incluindo Argentina e Líbano, este último muito dependente das importações de trigo.
Em vez de aumentar a oferta, liberar estoques de alimentos e tentar acabar com a guerra na Ucrânia, os governos e os bancos centrais estão aumentando as taxas de juros, o que aumentará o peso da dívida dos países pobres famintos por alimentos. Como expliquei em artigos anteriores, e a UNCTAD concorda, os aumentos das taxas de juros do banco central não fazem nada para controlar a inflação criada pelas interrupções do fornecimento, exceto para provocar uma recessão global e uma crise de dívida dos mercados emergentes.
O aumento dos protestos e da turbulência política preocupa mais as principais potências do que as pessoas que morrem de fome. Como disse a secretária do Tesouro dos Estados Unidos, Janet Yellen: “A inflação está atingindo os níveis mais altos vistos em décadas. Os preços acentuadamente mais altos dos alimentos e fertilizantes exercem pressão sobre os lares em todo o mundo, especialmente dos mais pobres. E sabemos que as crises alimentares podem desencadear mal-estar social.”
Nos anos 1840, quando o capitalismo se tornou o modo de produção dominante em nível mundial, Marx falou de um “novo regime” de produção de alimentos industrial-capitalista, relacionado à revogação das Leis dos Cereais e o triunfo do livre comércio, após 1846. Associou este “novo regime” à conversão de “grandes extensões de terra cultivável na Grã-Bretanha”, promovida pela “reorganização” da produção de alimentos, em consequência dos avanços na criação e gestão do rebanho, e a rotação de culturas, junto a desenvolvimentos relacionados com a química de fertilizantes à base de estercos.
A produção capitalista de alimentos aumentou drasticamente a produtividade e transformou a produção de alimentos em uma indústria global. Em meados dos anos 1850, essas tendências já eram evidentes: cerca de 25% do trigo que era consumido na Grã-Bretanha era importado, 60% da Alemanha, Rússia e Estados Unidos. Mas também provocou crises regulares e recorrentes de produção e investimento que criaram uma nova forma de insegurança alimentar.
Não era mais possível atribuir a carestia e a fome à natureza e ao clima, se é que alguma vez foi possível. Agora, significava claramente o resultado das desigualdades da produção capitalista e da organização social em escala global. E são os mais pobres que sofrem. Karl Marx escreveu, certa vez, que a carestia “matava somente os pobres diabos”.
E com a agricultura industrial veio a cruel exploração e os maus-tratos contra animais e humanos. Em um caderno inédito, Marx descreveu como “repugnante” a alimentação em estábulos, um “sistema de prisão celular” para os animais. “Os animais nascem nessas prisões e permanecem nelas até serem mortos. A questão é se esse sistema relacionado a um modelo de reprodução que faz os animais crescerem de forma anormal, ao reduzir os ossos para transformá-los em mera carne e uma grande quantidade de gordura – ao passo que antes (de 1848) os animais permaneciam ativos, pastando em liberdade tanto quanto possível -, provocará em última instância uma grave deterioração da força vital.”
Esta é uma crise global e requer uma ação global, assim como a pandemia e a crise climática. Mas tal coordenação global é impossível enquanto a indústria mundial de alimentos for controlada e estiver nas mãos de alguns poucos produtores e distribuidores multinacionais de alimentos e a economia mundial se dirigir para outra recessão.